Treinamento de core em instabilidade e desempenho em sprints: por que os resultados devem ser interpretados com cautela

Recentemente, foi publicado um estudo de revisão sistemática com meta-análise (Instability core training vs traditional core training on trunk strength and sprint performance among athletes: a systematic review and meta-analysis” , PeerJ, 2025) que comparou os efeitos do instability core training (ICT) e do treinamento tradicional de core (TCT) sobre a força do tronco e o desempenho em sprints em atletas. Entre as conclusões apresentadas, os autores afirmam que o treinamento em instabilidade promoveria melhorias superiores no desempenho de sprint quando comparado ao treinamento realizado em superfícies estáveis. Contudo, uma análise mais cuidadosa do próprio artigo revela inconsistências metodológicas e estatísticas importantes, especialmente no que se refere ao desfecho de sprint, que limitam substancialmente a validade dessa conclusão.

O primeiro ponto crítico refere-se à heterogeneidade extremamente elevada observada na meta-análise do desempenho em sprints. O valor de I² reportado é próximo de 90%, o que indica que a maior parte da variabilidade dos resultados não se deve ao acaso, mas sim a diferenças substanciais entre os estudos incluídos. Em termos práticos, isso significa que os estudos não estão estimando um mesmo efeito subjacente. Nessa condição, a interpretação de um “efeito médio” combinado torna-se conceitualmente frágil, pois o valor agregado deixa de representar adequadamente qualquer população ou intervenção específica.

Essa heterogeneidade não é inesperada quando se observa que a meta-análise agrupou desfechos que não são biomecanicamente equivalentes. Foram combinados tempos de corrida em diferentes distâncias (10, 20, 30 e 17,7 metros) com desempenho em 50 metros de nado livre. Embora a padronização estatística por meio do standardized mean difference permita combinar variáveis com unidades distintas, ela não resolve o problema conceitual de fundo: corrida de sprint e natação de curta distância dependem de mecanismos mecânicos, neuromusculares e energéticos distintos. Assim, o desfecho analisado deixa de representar “desempenho em sprint” como um constructo único e passa a ser uma agregação estatística de tarefas com demandas completamente diferentes.

Outro aspecto relevante diz respeito à consistência interna dos resultados estatísticos reportados. O intervalo de confiança apresentado para o efeito combinado de sprint praticamente tangencia o valor nulo, sugerindo um efeito pequeno e marginal. Entretanto, o valor de p reportado é extremamente baixo, incompatível com a amplitude do intervalo de confiança apresentado. Essa discrepância levanta a possibilidade de erro de reporte, erro de transcrição ou interpretação inadequada dos resultados gerados pelo software de meta-análise. Independentemente da origem, a incoerência compromete a confiança na significância estatística atribuída ao efeito.

Há ainda um problema metodológico central relacionado à direção do efeito para variáveis de tempo. Em testes de sprint, valores menores indicam melhor desempenho. O artigo não descreve de forma clara como essa convenção foi tratada durante o cálculo dos tamanhos de efeito. Em meta-análises, é necessário inverter o sinal do efeito ou redefinir explicitamente a direção de benefício; caso contrário, há risco de inversão interpretativa, em que um aumento do tempo seja erroneamente tratado como melhora de desempenho. A ausência dessa informação compromete a transparência e a reprodutibilidade da análise.

Adicionalmente, alguns estudos incluídos avaliaram múltiplas distâncias de sprint dentro do mesmo grupo experimental, como diferentes splits de corrida. O artigo não informa qual critério foi utilizado para selecionar essas medidas ou se múltiplos desfechos do mesmo estudo foram combinados de maneira adequada. A falta dessa explicação levanta a possibilidade de dupla contagem de participantes ou de atribuição indevida de peso estatístico a determinados estudos, o que pode distorcer tanto a magnitude quanto a direção do efeito combinado.

Por fim, mesmo quando os próprios autores reconhecem a presença de estudos com resultados discrepantes ou classificados como outliers, a abordagem adotada não resolve os problemas estruturais da análise. A retirada pontual de um estudo não corrige a mistura conceitual de desfechos, a heterogeneidade elevada ou a falta de padronização metodológica. Assim, a robustez do resultado permanece limitada, independentemente de pequenas variações no tamanho do efeito combinado.

Em síntese, embora o estudo em questão apresente uma revisão extensa da literatura sobre treinamento de core, os dados disponíveis não sustentam de forma consistente a afirmação de que o treinamento em instabilidade melhora o desempenho em sprints. As inconsistências estatísticas, a heterogeneidade excessiva, a mistura de modalidades e distâncias distintas e a ausência de transparência na extração e no tratamento dos dados indicam que esse desfecho deve ser interpretado como exploratório, e não como evidência sólida para prescrição ou tomada de decisão prática.

Do ponto de vista científico, esse caso ilustra a importância de diferenciar entre a existência de um valor estatisticamente significativo e a validade conceitual e metodológica do resultado apresentado. Em ciência do treinamento, conclusões sobre desempenho só são sustentáveis quando os desfechos são bem definidos, comparáveis e analisados de forma coerente com os princípios biomecânicos e fisiológicos que regem a tarefa avaliada.

Autor : Bernardo N. Ide